A Historiadora Que Venceu a Ignorância
Seria nosso maior problema a interpretação de texto?
Lídia atravessou o círculo de luz em partes. Do sol da meia-noite surgiu primeiro uma perna, escolhendo onde pisar, evitando as pedras escorregadias e as piscinas naturais da praia. Só depois veio o resto do corpo, confiante. A luz vermelha iluminou a noite como um farol antes de desaparecer, atraindo a atenção de um pescador que passava de barco.
O gélido vento encolheu o corpo de Lídia. Ela deixou os olhos se acostumarem à escuridão, ouvindo ondas quebrarem nas pedras. O pescador remava confuso, o clarão ainda marcado na retina. Se afastava, mas logo voltava o barco em direção à praia. Seria a visão de uma das reuniões satânicas das quais tanto ouvira?
Ciente do perigo daqueles tempos, Lídia buscou abrigo. Iluminou o caminho usando a lanterna, a areia aos poucos sendo ocupada por tufos de grama, onde encontrou um barraco entre duas amendoeiras.
Extinguiu a luz e avançou atenta ao som das botas no gramado úmido. Abriu a porta, revelando um interior ainda mais escuro. Já se acomodava sobre o macio amontoado das redes de pesca quando notou sombras se moverem fantasmagóricas, projetadas pelo lampião do pescador.
Escondida atrás dos remos, ao lado da porta, ouviu o ranger das dobradiças enferrujadas. O ambiente foi iluminado pela luz dançante, avermelhada, brilhando na peixeira que o homem segurava. Não encontrando ninguém, ele apoiou o lampião e a faca sobre uma longa mesa de madeira, fez o sinal da cruz e começou a rezar em voz alta.
Circulava pelo pequeno espaço, repetindo preces e balançando as mãos unidas. Na terceira reza, notou o tecido roxo na penumbra. Sem desviar o olhar, pegou o lampião atrás de si e o aproximou dos remos, incapaz de conter o tremos das mãos.
—Bruxa! — gritou ao ver os olhos castanhos que o encaravam, aterrorizados. Tateou o balcão procurando o facão. No instante em que se virou, Lídia tomou um remo, empurrou o pescador ao chão e cobriu-o com as redes.
— Não sou bruxa, não, e não vou machucá-lo — disse, mantendo-se perto da porta. O homem se debatia. — Estou procurando por Seu Isauro. Um senhor sozinho, que vive de escrever coisas doidas. Talvez você já o tenha chamado de bruxo. Sabe onde encontrá-lo?
— Vais pro inferno! Aqui se escreve o que é de Deus, não somos como as tuas em Tartuí! — Disse o homem, voltando a rezar em voz alta. — O que escreves aí, hein? Um feitiço? Deus me protegerá!
“Tartuí”, anotou. Estava no tempo certo. Lídia, satisfeita, fechou seu caderninho e o abandonou na cabana.
* * *
Chegou em Tartuí ao amanhecer. Fazendeiros se ocupavam dos animais, então aproveitou para interrogá-los. Nenhum conhecia Isauro, mas, à menção de alguém que escreve coisas estranhas, a direcionaram para Miriam, no centro comunitário. Era uma senhora, mas avisaram para que tomasse cuidado: poderia ser uma bruxa.
Encontrou a humilde casa, pintada de branco e azul. Uma porta de madeira, ainda fechada, a encarava acima dos dois degraus de cimento. Lídia sentou-se e descansou o corpo na porta enquanto aguardava.
— Com licença, moça, preciso entrar. — Lídia, que já tinha o rosto vermelho queimando no sol, acordou com a voz da senhora. — Veio usar a biblioteca?
— Na verdade estou procurando por Seu Isauro. É Miriam, né? Pela cara de espanto imagino que saiba de quem estou falando. — Respondeu, se levantando com um sorriso. — Sou Lídia.
— Onde ouviu esse nome? — Perguntou Miriam, virando o rosto enquanto destrancava o cadeado.
Entraram na pequena biblioteca do centro comunitário, onde duas prateleiras de madeira abrigavam escassos livros, suas páginas lutando para se manter dentro das capas desgastadas. Miriam se acomodou atrás de um balcão, no meio da sala.
— Um amigo conheceu Isauro há muitos anos. Disse que tinha planos de escrever um livro de fábulas e reflexões sobre a humanidade. Quando soube que eu viajaria para cá, pediu para tentar conseguir uma cópia.
— Curioso… Isauro não costuma contar seus planos a ninguém.
— Só me disseram que tinha histórias capazes de inspirar muitas pessoas. Ouvi a fábula da baleia e do pescador. Era emocionante, colocava todo o tempo da humanidade em perspectiva.
Miriam observava Lídia através das grossas lentes de seus óculos de armação branca. Detrás das pilhas do papel manuscrito no balcão, avaliava seus gestos incomuns, suas calças e roupas peculiares e como consultava sempre um pequeno caderno.
— Engraçado, essa história não está pronta. Isauro acabou de começar a trabalhar nela.
De olhos arregalados, Lídia folheou seu caderninho. Merda, deveria ter estudado melhor a linha do tempo. Não esperava o interrogatório.
— Sabe onde ele está?
Miriam se levantou, sorrindo. Contornou o balcão que as separava, evitando esbarrar nos escritos, e se aproximou de Lídia. Fez uma repentina expressão séria, tocando seus ombros e encarando-a.
— Se veio até aqui, imagino que meu trabalho tenha tocado algumas vidas de onde é.
— Mais do que pode imaginar. — Respondeu sorrindo enquanto fazia anotações.
— Lídia, como Isauro, só converso com meu editor, por cartas. Hoje, no entanto, fico muito feliz de falar com você.
Lídia tremia. A página do caderninho parecia um grande borrão de escritos confusos. Ambas se sentaram em poltronas empoeiradas, perto da janela. O sol esquentava a biblioteca, e Lídia deixou o casaco roxo dobrado sobre o colo, usando o volume como apoio para escrever.
— Toda a obra de Isau… a sua obra, compara a humanidade com outros seres, outras formas de vida…
— Correto, somos apenas uma parte da vida, não donos dela.
— Certo, mas você defende que a humanidade deveria então extinguir estas outras formas de vida para se estabelecer como dominante?
O rosto de Miriam se contorceu. Olhava para o teto, como se revisasse mentalmente tudo o que havia escrito em busca de qualquer abertura para uma interpretação tão imbecil de seus pensamentos.
— Quem chegaria a uma conclusão absurda dessas?
— Parece que bilhões de pessoas. — Respondeu Lídia, com um sorriso triste.
— É por isso que veio? Para esclarecer interpretações? — Miriam imaginava as coisas terríveis que poderia ter causado.
— Não, isso não adiantaria. Vim só para registrar a estupidez humana, talvez evitar que isso aconteça de novo. Mas você me deu mais do que eu esperava! Posso provar que Isauro era, na verdade, Miriam.
— Mas é isso que quis evitar. — Miriam voltou-se ao balcão, manuseando as folhas contendo anos de seus pensamentos. — Se souberem, vão questionar tudo o que eu disse.
— Antes, vão me questionar, o que quer dizer que você vai receber outras visitas como esta, apesar de logo esquecê-las também. Quando perceberem que eu estava certa, sim; vão questionar seus ensinamentos. Será o começo do fim do Isaurismo!
Miriam assentiu sem tirar seu olhar das folhas. Relia frases aleatoriamente, com olhos mareados.
— Serei sempre incompreendida, silenciada pela ignorância? Alguma coisa boa veio do que escrevi?
— Por um tempo, pararam de matar baleias. Viraram animais sagrados, até que resolveram entender de outro jeito.
Lídia ficou em silêncio enquanto Miriam examinava as milhares de páginas soltas. Fez mais perguntas, mas ela parecia mergulhada em seu próprio mundo. Quando o horizonte se avermelhou, Lídia se despediu. Miriam já não a reconhecia.
Caminhou em direção à praia, onde logo o portal se abriria novamente. Levava consigo provas da ignorância que destrói a si mesma.
Sobre a Fotografia
A foto desta edição foi tirada em Florianópolis, na praia da Armação, em um experimento de light painting. Apesar de parecer resultado de criação digital, o processo é bem natural: é só configurar a câmera para deixar o sensor exposto à luz por alguns segundos (ao invés das frações de segundo de uma fotografia comum) e nesse tempo usar alguma fonte de luz para fazer desenhos no ar. Nesse caso, foi girando um bastão de led atrás da modelo que cheguei ao efeito do portal.
Há algumas edições falei do fotógrafo Eric Paré, que ficou famoso por esse estilo de imagem, mas o limite para experimentar com light painting é a imaginação. Darren Peterson, por exemplo, faz divertidos desenhos usando a mesma técnica, enquanto Rafael Martins explora iluminação de ambientes. A alemã JanLeonardo tem, inclusive, trabalhos mais comerciais (e muito bonitos) que exploram esse uso da luz.
Não Sai da Cabeça
📚 As Virgens Suicidas, de Jeffrey Eugenides – Esse livro, publicado no começo dos anos 1990, chegou até mim em um curso de escrita da
. Lemos um pequeno trecho do primeiro capítulo para avaliar o uso de detalhes e do movimento do tempo na narrativa. Um mês depois, discutimos sobre o livro como um todo. Não há muitos spoilers para dar aqui: as cinco filhas da família Lisbon, extremamente religiosa e conservadora, cometem suicídio. Somos convidados a assistir suas vidas um pouco de fora, da perspectiva dos garotos do bairro que frequentavam o mesmo colégio que as irmãs. O resultado é uma história que revela mais sobre os narradores do que sobre as garotas.📚 A Invenção de Morel, de Adolfo Casares – Em uma conversa no Discord do Boa Noite Internet, do
, alguém comparou elementos do livro de Casares com o recém lido “Piranesi”. Bastou isso para que eu começasse a leitura imediatamente, mas descobri uma história ainda mais intrigante. No prólogo do livro, Jorge Luis Borges convence: “Discuti com seu autor os pormenores da trama; reli-a. Não me parece imprecisão ou hipérbole classificá-la de perfeita”. Nos primeiros minutos surgem as perguntas: o que o personagem está fazendo nessa ilha? Quem é? O que fez de errado para estar fugindo? As pouco mais de 100 páginas passaram voando.🎮 The Last of Us (Partes I e II), de Neil Druckmann – Cheguei muito atrasado para pegar o bonde de The Last of Us. Joguei os dois em Outubro, só depois de ter visto a primeira temporada da série (que também está maravilhosa), mas não demorei para me apaixonar. É uma história distópica extremamente focada na humanidade dos personagens, tem um mundo bem construído, diálogos envolventes, uma constante quebra de expectativas e uma fotografia maravilhosa. Mas, acima de tudo, é o jogo que melhor consegue contar uma história através das ações do jogador. A narrativa não acontece só na tela, você se sente parte dela e se importa com os personagens do começo ao fim. A primeira parte agora também está disponível para PC. Durante novembro também pretendo escrever uma pequena análise sobre os jogos no blog. Fique de olho.
🎙️ - Bobagens Imperdíveis, de – O podcast que tem acompanhado muitas das minhas manhãs finalmente voltou para uma quarta temporada. Entre os devaneios da autora, descobrimos inúmeras curiosidades históricas, reflexões, artistas e, como diz o nome, bobagens imperdíveis. O último episódio, A Baronesa Dadaísta, discute um tema que muito conversa com essa edição: e se o famoso urinol de Duchamp tivesse sido criado por uma mulher? Aline explora a vida de Elsa von Freytag-Loringhoven para descobrir.
📰 Black Noise, de — Estou cansado dos algoritmos de serviços de streaming que me recomendam músicas cada vez mais sem graça. Em uma busca pelos velhos tempos, quando blogs de música eram comuns, encontrei essa newsletter maravilhosa que periodicamente faz uma varredura por sons de todas as épocas e lugares, com reviews honestos e certeiros. Comecei por esta edição, mas desde então a Black Noise tem sido uma das minhas melhores fontes de músicas “novas”.
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Até o mês que vem!
Adorei!