Nyima carrega uma cesta vazia. Desce o caminho de chão até o círculo de pedras marcado por um rústico H, onde pessoas conversam. “Já tem um tempo que estamos aqui”, diz outra senhora. Nyima se aproxima do círculo e observa o horizonte protegendo os olhos do sol. Vê um pequeno ponto preto no céu azul entre as paredes de rocha e neve. "Está chegando", diz, afirmação confirmada pelo estalar de hélices ecoando pelo vale.
O helicóptero contorna a parte baixa do vilarejo, se posicionando sobre o heliporto improvisado. A poeira sobe, o vento expulsa os gorros dos que estão mais próximos. Todos protegem os olhos e viram as costas. Um homem vestindo um casaco sintético desce e abre o bagageiro, de onde começa a tirar sacos, caixas e produtos amarrados em redes. O povo abre tudo, enchendo cestas, mochilas e sacolas com o que lhes cabe. Nyima avalia o que pegou, conta as poucas notas que carrega e entrega todas ao piloto.
Ele guarda o dinheiro e logo volta ao trabalho. Tira, então, quatro grandes mochilas, seguidas por quatro estranhas pessoas. Todas vestem botas e casacos leves com nomes de lugares distantes. A pele e cabelo claros avisam que são turistas. Observam o lugar maravilhados, enquanto levantam os zíperes dos casacos e vestem luvas. "Nossa, que frio", um diz. "Que surpresa", complementa a outra. Os moradores sobem de volta às suas casas, mas Nyima fica. É uma das poucas que sabe falar inglês. Pode conseguir novos clientes.
Três deles observam um mapa, erguem bastões de ferro e caminham pelo chão de terra pisada. A garota se despede dos demais turistas em uma língua que Nyima não conhece, indo em sua direção. Se chama Emma e quer passar uns dias ali. “Me falaram que têm acomodações caseiras” acrescenta sorrindo. “Claro" diz Nyima, “tenho um quarto para alugar, venha comigo". Emma se oferece para carregar a cesta, mas Nyima a afasta balançando a mão. “Melhor não”, responde.
Estava certa. O caminho até a casa é uma subida leve, mas suficiente para deixar Emma ofegante. Seu coração pulsa e a vista borra enquanto tenta manter o ritmo. Nyima para algumas vezes para deixar a garota descansar. “Passos lentos”, recomenda, “vai levar alguns dias até se acostumar com a altitude”. Quando finalmente chegam à casa de madeira clara e telhado verde, Emma se apoia no baixo muro de pedras, trêmula, enquanto Nyima empurra o portão.
A casa é pequena, mas tem um quarto vago. “Só temos um banheiro”, avisa, apontando uma porta no fim do corredor, “se quiser tomar banho vai ter que esperar até depois do almoço. Os canos ainda estão congelados.” Emma vê grossos cobertores e o que parece um aquecedor a lenha. Respira aliviada. “Vou ficar”, afirma. “Só tem uma coisa… Eu não tenho como pagar. Na verdade, tenho trocado estadias por trabalho. Posso ajudar em alguma coisa?”
Nyima encara a garota, séria. Se pergunta se entendeu o que ela disse. Sabe quanto custa chegar até lá de helicóptero. “Sou influenciadora,” Emma completa. “Posso trazer mais clientes”. Nyima não gosta da ideia. Observa a cesta com os produtos que lhe custaram todo o dinheiro e começa a fazer contas. Mas não quer expulsá-la, seria difícil conseguir outro lugar para ficar. Concorda enquanto pensa no que fazer.
* * *
Emma segue Nyima por todos os lados, sempre filmando com o celular. No mesmo dia, aprende como preparar o caldo de legumes e o arroz do jantar usando o forno a lenha. Ou melhor, forno a bosta. “Como é que não fede?”, pergunta. Nyima ri. Emma grava um vídeo, falando do “lindo ciclo da natureza. Nada se cria, tudo se transforma. A merda de iaques aquece a minha comida”, diz séria.
No dia seguinte, grava mais. Primeiro, ajudando Nyima a recolher as fezes no campo e espalhando-as sobre os muros de pedra para secarem ao sol. Depois, colhendo batatas e enterrando-as todas juntas em seguida. “Só assim sobrevivem ao frio!”, explica aos seguidores. Tudo vira um vídeo, uma foto, uma história. “A gente não imagina o que esse povo tem que fazer para sobreviver aqui”, conta para a câmera, comendo o pão que Nyima assou no café da manhã.
No fim de semana seu corpo já está acostumado à altitude, e decide ir ao mirante. “Vá devagar. Vai demorar quase duas horas para chegar, mas só trinta minutos para voltar”, Nyima avisa. Emma se prepara. Sem pedir, leva barrinhas de cereal e garrafas d’água que Nyima havia comprado do piloto para revender. “Não confio nessa água da nascente”, se justifica quando enche a mochila.
Começa a caminhar por uma floresta que logo se abre para revelar a cadeia de montanhas. Vê as casas de telhado verde, e bandeirinhas coloridas presas em pilastras de pedra. Filma o caminho sem perder nenhum detalhe. No mirante, observa os picos mais altos que já viu e as bandeirinhas ao vento. Tão pacíficas ali, no silêncio. “Olha que paz, gente. Namastê.”
Quase um mês depois de chegar, Emma decide partir. Agradece Nyima e pede seu contato para compartilhar os vídeos. Nyima anota seu endereço, quando Emma aponta o celular. “Quero dizer um e-mail, ou algo assim". Nyima passa o e-mail do centro comunitário e Emma dá um abraço na senhora. Vai embora levando tudo o que trouxe e um pouco mais.
* * *
Nyima se lembra da visita quando lê o e-mail que recebe de Emma anos depois. A garota planeja voltar, dessa vez para subir o Everest, e quer visitar o pacífico vilarejo. “Não vai encontrar”, pensa.
Os vídeos de Emma trouxeram outros viajantes, sempre querendo comer sua comida e pechinchando a estadia. Aos poucos, os habitantes se acostumaram a ver filas subindo a trilha ao mirante. Pessoas seguiam pastores para tirar fotos com iaques. Um grupo chegou a fazer uma briga de bosta, atirando uns nos outros o combustível que secava nos muros, deixando pessoas sem ter como cozinhar e se aquecer. Turistas buscavam Nyima querendo selfies e mencionando Emma. “Uma inspiração”, contavam.
As estadias até melhoraram as contas por um tempo. Mas logo um alemão conseguiu permissão para comprar um terreno e abrir um hostel. Não demorou para que um colega começasse uma agência de turismo, contratando jovens locais e ficando com quase todos os lucros dos caros passeios. As noites, antes silenciosas, agora eram uma cacofonia de bêbados e música ecoando nas montanhas.
“Melhor não voltar”, Nyima escreve em sua resposta. “Não sei se pelo seu bem ou o meu”, completa em voz alta.
Essa foi mais uma edição da Mil Palavras, espero que tenha gostado.
A fotografia escolhida para esse mês foi feita em uma viagem de trabalho ao Nepal há quase dois anos. Estava trabalhando em um projeto, liderado por um membro da comunidade, que queria levar conexão de Internet para o centro comunitário do vilarejo. Essa história você encontra aqui.
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Obrigado, e até o mês que vem!
João Aguiar
Adorei! Que coisa bonita de ler!