Celeste soltou a corda, observando-a deslizar pela palma da mão, queimando a pele. Agarrou-a um instante antes ouvir o ploc do balde ao atingir a água. Era o nono dia seguido que não errava, e essa pequena conquista a alegrou. Apreciou o som da água batendo contra as paredes de pedra. Quanto dela ainda haveria lá embaixo, se perguntava. Sabia que não podia levar mais de um balde, por isso aproveitava o som místico da abundância. Naquela manhã, porém, foi interrompida.
Um estalo seco ecoou por todo o campo árido. Celeste, com o susto, derrubou o balde no poço e se escondeu atrás da antiga estrutura de cimento. Outro estalo, dessa vez seguido por passos rápidos. Viu seu pai correr com outros homens, todos segurando lanças e levando facões na cintura. Um foi atingido por algo invisível, arrancando-lhe pedaços e espalhando o precioso sangue pela terra. Não precisou conter o grito, a voz não saiu. Mais disparos. Celeste se levantou somente quando o corpo de seu pai atingiu o chão. Com a pouca força que lhe restava, ele empurrava a garota, mandando-a correr. Celeste puxava seu braço. Entre a fumaça e as lágrimas viu homens invadindo casas, arrastando sacos de grãos e galões. Aquele que estava mais próximo avistou-a e disparou em sua direção.
O tiro acertou seu pai outra vez. Antes que pudesse reagir, Celeste foi arrastada para trás. Naíra a levava pelo braço até o grupo que fugia. Os disparos cessaram. O homem, no entanto, ainda as perseguia. Tinha uma faca na mão e um sorriso maníaco no rosto. Se aproximava, as pernas de Celeste não corriam tão rápido. Passaram pelos macabros corpos de guerreiros e Naíra tomou uma lança, empunhou-a e encarou o assassino que vinha em sua direção.
— Corre, menina, vai embora daqui! — Ordenou a Celeste, que ficou paralisada.
Naíra inspirou e, com calma, esperou até que o homem estivesse a poucos metros de distância. Arremessou a lança em um movimento rápido, atravessando o abdome do invasor como se fosse água. Celeste assistiu imóvel quando Naíra se aproximou, retomou a lança e desferiu o golpe fatal sobre a marca de cacto no peito do assassino.
* * *
O vento quente do deserto secava as lágrimas no rosto de Celeste. O grupo caminhava em silêncio, levando a tristeza e os poucos mantimentos que conseguiram apanhar.
— É um dia de caminhada até o primeiro posto de Irema, e logo o sol vai ficar forte demais. — Disse Naíra — cada passo nos deixa mais longe da morte.
Celeste seguia o fluxo, sem transparecer a indignação com o grupo que parecia caminhar naturalmente depois de perder seus companheiros, de perder seu pai. Naíra o vingara, pensava, mas quem vingaria ela por perder seu lar?
Pararam ao avistar um recesso entre as dunas, protegendo a areia do sol. Cavaram com as mãos, aos poucos sentindo a temperatura dos finos grãos diminuir. As primeiras a terminarem os buracos enrolaram panos por todo o rosto, apoiaram o corpo inclinado na duna, e ajudaram umas as outras a se enterrar. Naíra notou o olhar de horror de Celeste ao ver aquela cena. A garota ouvira seu pai contar como fazia isso em suas viagens, o que lhe causava pesadelos. Imaginava o corpo eternamente soterrado, sem conseguir sair. Podia sentir os grãos de areia que se infiltravam nas pálpebras e arranhavam os olhos, enchendo também os pulmões até que não restasse espaço para o ar.
— Vou estar logo aqui, nesse buraco ao lado — afirmou Naíra. — Eu mesma te desenterro na hora de ir. Prometo.
Protegida pela escuridão e reconfortada com o pano que cobria seu rosto, Celeste sentiu a areia fresca resfriar seu corpo, os músculos relaxando. Não demorou até que um sono pesado a tirasse do mundo real.
* * *
— Não podemos oferecer ninguém. — Disse a líder de Irema. — Os ataques na fronteira leste estão mais constantes, quase todo nosso efetivo foi deslocado para lá. Me preocupa saber que também estão ao norte.
Enquanto as líderes discutiam, Celeste manuseava a lança de Naíra. Imitava sua empunhadura, levantava o pesado cabo sobre a cabeça, sentindo seus braços tremerem. Tentou atirá-la contra um tronco seco, mas o objeto sequer chegou ao destino.
— Podem não ser os mesmos. Um dos que encontramos tinha a marca do povo de Porto no peito. — Respondeu Naíra. — Não esperaria eles tão ao leste sem que vocês notassem.
— Não são. Monitoramos os rádios dos acampamentos próximos, parece que esses vem de Araimano.
Celeste arremessou a lança duas, três vezes, mas errou. Caminhou até o tronco com raiva, queria o prazer de atravessá-lo, tirar seus pedaços. Na sexta tentativa, usou o impulso do corpo e fez a lança ir mais longe. Acertou, porém, a corda que sustentava o poste de madeira ao lado. Viu o objeto tombar lentamente, atingindo o tronco seco que se despedaçou.
— Vocês também têm rádios? — Perguntou Naíra.
— Temos. Usamos os que recolhemos depois de destruir um dos acampamentos para monitorá-los.
— Então acho que podemos nos ajudar.
* * *
No rádio, conversaram se passando por gente de Porto, falando de um lugar ao norte que não tinha tanta água, mas era mais fácil de tomar do que Irema. Não demorou para que alguns invasores de Araimano se dirigissem para lá.
Sob os protestos de Celeste, que fora ordenada a ficar em segurança, Naíra partiu na noite seguinte com as guerreiras. Todas agora vestiam as roupas de Irema, com o corpo protegido por panos. Tomaram um caminho que Naíra não conhecia e, antes do amanhecer, chegaram aos morros familiares ao redor de seu lar.
Se espalharam em duplas, cercando o vilarejo por algumas centenas de metros. As que estavam ao leste logo avistaram os dez homens que chegavam. Cautelosos, estes se dividiram em dois grupos e adentraram o lugar por lados opostos.
O silêncio do amanhecer logo foi interrompido pelos conhecidos disparos, seguidos de grandes clarões, quase como fogos de artifício celebrando a estupidez humana.
A companheira de Naíra, em silêncio, sinalizou algo adiante. Ouviram passos e uma respiração ofegante. Um homem ensanguentado arrastava sua perna. Ele se recostou em uma pedra, abaixo delas. Naíra se assustou ao ver, ao lado dele, a guerreira que há pouco estava com ela. Com um movimento natural, quase belo, cortou a garganta do homem.
Adentraram o vilarejo vendo corpos caídos em posições curiosas, como se em um instante a vida tivesse desistido de sustentá-los. Naíra estava satisfeita, os invasores tinham feito o pior eles mesmos. Na entrada oposta, outra dupla de guerreiras chegava. A menor das duas acelerou o passo, e Naíra percebeu que perseguia um homem que engatinhava.
Ela atirou a lança. Levantou pedaços de terra ao errar o alvo, que implorava. Urrava de ódio cada vez que ouvia o som do metal na terra seca. Desistiu, e usou as duas mãos para cravar a lança nas costas do invasor, ouvindo seu último gemido. Assistiu o sangue deixar seu corpo, aos poucos formando uma poça curiosa aos seus pés. Quanto ainda sairia, se perguntou.
A pequena guerreira ergueu os braços trêmulos. Ela celebrava a vitória de seu povo.
É difícil olhar para uma fotografia de uma paisagem desértica e, no meio de queimadas e uma crise climática cada vez mais grave, não pensar em um cenário distópico. Essa história, assim como as demais, combinou um pouco das sensações de quando a capturei caminhando pelas dunas há mais de sete anos, com a realidade dura que enfrentamos em 2024. A foto original foi tirada em Sossusvlei, na Namíbia, onde pude ver uma natureza que em nada se assemelha à que temos no Brasil, pelo menos não por enquanto.
A imagem também fez parte de uma exposição em 2023, no dia mundial da fotografia, junto com outras duas exibidas em preto e branco. Falei um pouco sobre essa experiência no blog.
Antes das recomendações do mês, deixo um pedido a todas as leitoras e leitores que compartilham da minha ansiedade climática: a luta contra o aquecimento global segue o clichê “pense globalmente, atue localmente”. De onde quer que você esteja lendo essa edição, se vai votar nesse domingo, dê uma olhada no que seus candidatos estão propondo para combater as mudanças climáticas na sua cidade.
Achei Na Internet
📚 Não Verás País Nenhum, de Ignácio de Loyola Brandão – O tema desta edição me lembra dessa obra quase profética da ficção brasileira. Publicado em 1981, “Não Verás País Nenhum” retrata um Brasil onde a Amazônia se tornou um deserto, qualquer exposição ao sol gera risco de vida, enquanto o país é governado por milícias que já não sabem muito bem o que querem.
📚 The Ministry For The Future, de Kim Stanley Robinson – Uma das melhores obras de ficção especulativa que li nos últimos tempos, o livro descreve um cenário em que, após milhões de pessoas morrerem em uma onda de calor, as Nações Unidas criam um órgão focado em defender os direitos das futuras gerações. A história é uma coleção de soluções reais, todas possíveis de ser implementadas com tecnologias atuais, orquestradas em uma narrativa de política internacional. Infelizmente ele ainda não foi traduzido para o português.
📚 Economia Donut, de Kate Raworth – O livro da economista inglesa Kate Raworth é mais um sopro de esperança. O “Donut” do nome se refere à sua explicação de que a economia deveria se manter entre dois limites colocados como uma “rosquinha”: um círculo interno que seria o piso de tudo o que é necessário para uma existência social digna, e um outro externo que coloca os limites da exploração do meio ambiente para alcançar o primeiro. A leitura é acessível para pessoas sem familiaridade com as complexidades da economia, e não posso recomendá-la o suficiente.
🧑💻 Criando Histórias Interativas no Twine – Mudando completamente o assunto, em setembro escrevi no blog um texto sobre a minha experiência criando histórias interativas online usando o Twine. Lá você encontra uma delas para experimentar, além de algumas referências sobre narrativa em games.
📝 Café Sem Açúcar – Voltando ao tema do meio ambiente, a
publicou um texto maravilhoso em setembro onde fala que filmes de ficção científica são, na verdade, documentários. Além de refletir um pouco sobre algumas obras do estilo, também faz uma ponte com o que estamos vivendo no Brasil de hoje.Deixe seu comentário no Substack ou responda esse email para me contar o que achou. Vou gostar de ouvir a sua opinião.
Até o mês que vem!
Parabéns pelo texto e obrigada pela menção ☺️