Subo na bicicleta, visto o capacete, acendo as luzes dianteiras e traseiras. Me transformo em uma fonte de flashes e atenção na cidade. Pedalando por ruas pequenas, o vento forte não demora a secar o suor que restou no rosto depois da academia. Os músculos das pernas lutam, já fatigados pelo levantamento de peso. O pequeno trajeto de volta é curto, mas normalmente gosto de fazê-lo de bicicleta, aproveitando o ar livre, o cheiro do mar, assistindo às pessoas pelas calçadas entrando em restaurantes ou passeando com cachorros.
Hoje, no entanto, o mundo está mais apressado. As pessoas apertam os capuzes e sobem as golas dos agasalhos, andam encolhidas em passos largos, ansiosas por entrar em algum lugar fechado. Mais motoristas estão nas ruas, filas sem fim de automóveis ocupam até espaços invisíveis com o som das buzinas. Parecem crer que vão mudar o fluxo do mundo com seus avisos ensurdecedores. Eu continuo pedalando, corto o trânsito por espaços estreitos ou pelas ciclovias enquanto vejo os olhares vazios pelas janelas dos carros. Assim como eles, também quero chegar em casa.
Entro em uma rua estreita, onde uma fila única de automóveis aguarda o semáforo abrir. Vou pelo espaço à direita, perto do meio-fio, pedalando mais devagar. Quando a luz muda para verde apenas três deles conseguem passar antes da vermelha voltar. O motorista de um carro amarelo acelera com força, quase batendo na traseira do que está à frente, determinado a não perder sua chance de andar mais meio metro. Ele buzina, pisca o farol alto e joga o veículo para a esquerda e para a direita, avisando quem está na frente que saia do caminho. Mesmo me aproximando lentamente ao ver essa cena, não consigo parar a tempo de evitar que o carro, em seu ímpeto brutal, me atinja.
Por pouco não sou prensado contra o poste na calçada. Meu capacete raspa na estrutura de concreto e caio no asfalto. Enquanto tento me recuperar, ouço o motorista me xingando, com a janela do carro aberta. Faz gestos obscenos, diz que eu deveria estar na ciclovia, inexistente naquela rua, e que me mataria se tivesse um só risco na porta do seu carro. De pé, ainda me recuperando da queda, não consigo controlar minhas mãos trêmulas. Penso em xingá-lo de volta, em argumentar qualquer coisa que seja. Quando vejo, já estou tomando impulso para jogar toda a força do meu corpo adiante. Chuto seu retrovisor com a sola do pé, vendo o vidro se despedaçar no chão. Não digo uma palavra, apenas levanto o dedo médio, subo na bicicleta e continuo pedalando.
Passo o semáforo vermelho sem medo ao lado dos carros parados em fila, desembocando em uma grande avenida. Tento me afastar ao máximo do motorista louco, a adrenalina fazendo cada músculo do meu corpo tremer. Procuro outras ruas menores onde será mais difícil de me encontrar. Antes que eu consiga, o semáforo abre. De longe ouço o ronco do motor acelerando furioso, os pneus cantando. Não ouso olhar para trás, mas percebo que o motorista corta o trânsito pela contramão enquanto motos e carros buzinam e desviam incrédulos.
Entro em uma rua com ciclofaixa, contramão para automóveis. O louco não se limita pela lei e alguns segundos depois seus faróis me perseguem. Na outra direção, outro par de faróis altos me cegam. É o carro de uma senhora que não imaginava encontrar um motorista assassino pelo caminho. Luzes e buzinas se cruzam, o carro amarelo sobe na calçada para evitar a colisão, enquanto desvio pela esquerda de volta à avenida. Mas não demoro a ouvir o ronco do seu motor me seguindo novamente.
A faixa da direita está fechada com cones gigantes. Aproveito essa proteção para me separar dos automóveis, pedalando com toda a força que me resta e ganhando velocidade. A fila ao lado se move em marcha lenta em direção à entrada da ponte de pista simples que cruza o mar. Sua ciclovia, por sorte, é separada dos carros pela estrutura de metal.
Entro na ponte acreditando na minha salvação, mas na metade do caminho minhas pernas já não me obedecem. Pedalando contra o vento tenho que fazer o dobro do esforço e logo sinto a cãibra que me imobiliza. O trânsito anda mais rápido ao lado, não deve demorar até que o motorista me alcance. Eu me escondo atrás de uma larga viga de metal que separa a parte central da ponte e a ciclovia, colocando a bicicleta no chão enquanto massageio a panturrilha.
Os carros que passam não me notam e evito levantar o olhar. Outros ciclistas vem rápido e desviam de mim no último instante. Vejo o carro amarelo um pouco atrás, a janela aberta, o motorista levantando o corpo e olhando em direção à ciclovia. Me posiciono um pouco mais próximo da viga, escondido. Um ciclista vem na minha direção, reduzindo a velocidade. Quando me alcança, desce da bicicleta e me pergunta se está tudo bem, se estou machucado ou preciso de ajuda. Digo que não, que só tive uma cãibra e que logo vou seguir meu caminho, obrigado. Mas ele continua parado diante de mim por alguns segundos, o tempo é suficiente para chamar a atenção do louco.
Ele me vê e para o carro ali mesmo, no meio da ponte. Abre a porta e desce, me ameaçando de morte. Estou protegido pela alta estrutura de metal, mas ele começa a escalar. Seus olhos fixos em mim saltam no rosto vermelho, suado de fúria. Enquanto ele escala, sinto a adrenalina tomar conta do meu corpo outra vez e subo na bicicleta. Pedalo agora no sentido oposto, para onde ele não conseguirá voltar.
Tomo velocidade, olhando para trás para ver se estou seguro. O mundo é um borrão de luzes e sons. Não percebo quando meu corpo começa a voar, só vejo o guidão passar debaixo de mim em câmera lenta. Caio no chão rolando, me encolho e consigo desviar da bicicleta que derrapa na minha direção. Ainda estou tonto quando vejo a garota que chutou minha roda na saída da ponte gritando. “Ciclista maldito! Quase me atropelou!” ouço ela xingar. Ela chega mais perto, quebra minhas lanternas com os pés, levanta o dedo médio e sai correndo pela calçada.
A história dessa edição nasceu de grandes fantasias criadas em momentos de raiva, quando pedalava por cidades onde motoristas parecem acreditar que compartilhar as ruas com bicicletas é um favor e não parte do Código de Trânsito Brasileiro. Apesar do relato fictício, são reais as inúmeras as situações de perigo que ciclistas e pedestres encontram nas nossas cidades.
Nesse 22 de setembro comemoramos o “Dia Mundial Sem Carro”, a data pode ser uma ótima oportunidade para conhecer iniciativas que tentam promover cidades melhores para pessoas, além de transportes sustentáveis, como é o caso da Bicicultura.
Fiz a fotografia dessa edição há pouco mais de um ano, em Florianópolis, ao lado da ponte Hercílio Luz, que faz parte do cenário da história. Foram algumas tentativas de panning (quando acompanho um objeto em movimento com a câmera para borrar o fundo) até alcançar o efeito de velocidade que queria para a imagem. Gostei da técnica e, desde então, tenho preferido usá-la para fotos mais dinâmicas ao invés de resolver os detalhes na edição.
Achei Na Internet
📝 Newsletter do f/508 – Quem gosta de fotografia, arte e literatura também vai adorar a newsletter escrita pela
. Ela traz um misto de reflexões, dicas, achados incríveis pela Internet e conteúdo de qualidade para artistas.📚 Steering the Craft, de Ursula Le Guin – Depois da indicação do livro da Noemi Jaffe na edição anterior, fui me aventurar por essa obra de Le Guin que também busca refletir e demonstrar as estruturas por trás das histórias contadas através da escrita. Em pouco mais de 100 páginas, a autora traz exemplos que mostram como cada aspecto da composição de textos pode torná-los inesquecíveis. Por enquanto o livro está disponível apenas em inglês.
📚 O Mestre e Margarida, de Mikhail Bulgakov – O livro me chamou atenção pela premissa: o diabo visita Moscou com alguns de seus ajudantes (entre eles, um gato preto falante), bagunçando a sociedade russa dos anos 1930 e levando pessoas à loucura. Demorei para me acostumar com a narração, mas tudo na história foi estranho o suficiente para me colocar em uma realidade paralela.
📝 Clube de Cultura do Boa Noite Internet – Sou apoiador do Boa Noite Internet, mais uma obra do
. Lá, ele recentemente lançou um clube de cultura em um modelo um pouco diferente: ele lê um livro e vai compartilhando resumos dos capítulos e abrindo discussões com o grupo. O próximo ciclo começa agora em setembro com o livro “Quatro Mil Semanas: Gestão De Tempo Para Mortais", e ainda dá tempo de participar.Deixe seu comentário no Substack ou responda esse email para me contar o que achou. Vou gostar de ouvir a sua opinião. Até o mês que vem!