O rapaz de colete dourado jogou a faca para o alto. Acompanhou ela subir por um instante, mas, despreocupado, focou sua atenção às outras duas que giravam no ar. Estendeu uma mão para pegar a que caía, logo atirando-a para cima mais uma vez. Depois, apanhou as três e limpou o suor da testa enquanto caminhava com seu chapéu na mão, em vão, entre os carros que aos poucos aceleravam. Do outro lado da avenida, Malaquias assistia a tudo tocando seu violão. Mal terminou sua canção e quase foi atropelado, invisível diante da pressa da cidade. Menos apreciado que o malabarista, que ao menos teve sua atenção.
Decidiu levar seu violão e o banquinho ao calçadão do centro, ligou uma pequena caixa de som a um microfone e começou a performance da tarde. Cantou sucessos da música brasileira e, entre canções famosas, incluía algumas composições suas. Às vezes um pedestre ou outro olhava na sua direção, mas ninguém parava para assistir. Alguns poucos, como que por hábito, jogavam uns trocados no seu chapéu. Mas mal se demoravam. Ninguém parecia querer investir sua atenção, escasso recurso moderno, em Malaquias.
A cada dia ele se colocava à prova do público mais uma vez, incrementando seu ato. Buscou canções mais populares, se pintou como estátua viva e até chamou uma amiga dançarina para trazer mais movimento ao seu som. Seus olhos sempre buscavam o olhar dos outros, se prendendo a quem ousasse encará-lo com a intensidade de quem não solta aquilo que a tanto custo conquistou, o que só afugentava a gente. Com os raros olhares que captava, entrava em êxtase ao sentir sua alma ser vista.
Nas noites mais deprimentes, Malaquias frequentava alguns bares da região. Em uma delas, Aparecida se sentou à sua mesa, pegou um copo americano e se serviu da sua cerveja. Era uma antiga conhecida, uma cartomante, profissão que nunca soube o que é não ter atenção.
— Tô meio de saco cheio. Acho que nada do que eu faço importa — desabafou Malaquias. — Me divirto um pouco e os trocados até que podiam ser piores, mas ninguém tá nem aí. Não tenho sentido.
Aparecida sorriu, encarando os olhos vermelhos e aguados do outro lado da mesa.
— Talvez você só não esteja se comunicando com ninguém, ou você está tentando demais. Só vão prestar atenção em você se você falar o que eles querem ouvir, não o que acha que devem. — Abaixando a voz, acrescentou — Boa parte do meu trabalho é entender o que as pessoas querem ouvir, você pode fazer o mesmo. O resto é a mágica.
— Mas e eu? Pra mim o negócio é mostrar o que tá dentro de mim, o que eu sou, não ficar fazendo só o que os outros querem.
— Não dá pra ter atenção de verdade e fazer o que quiser, Mal. — Os dois ficaram em silêncio. Aparecida esfregava o dedo na mesa de plástico, fazendo desenhos com as gotas deixadas pelo copo gelado. — Quer dizer, às vezes até dá…
Malaquias olhou para Aparecida pelo canto dos olhos, esboçando um sorriso.
— Dá? Como?
— Se você não quer colocar os sonhos dos outros na sua arte, pode colocar a sua arte nos sonhos dos outros. — disse, desenhando grandes esquemas com as mãos no ar. — Posso te ajudar com isso, se quiser.
— Olha, obrigado Aparecida, já te entendi. Você sabe que mal tenho dinheiro pra essa cerveja, não dá pra te pagar por qualquer 'mágica' que vá salvar a minha vida.
— Não precisa me pagar. É só aceitar brindar comigo e eu te conto tudo.
— Só brindar? E o que acontece se eu brindar?
— Nada, você só fica me devendo um pouco da atenção que ganhar. — A voz de Aparecida era suave, mas seus olhos estavam sérios.
Malaquias encarou-a por um instante. Ouvira histórias sobre Aparecida, sabia que ela o cobraria do jeito que fosse. Mas para dar um pouco de atenção, primeiro precisaria ganhar alguma coisa.
— Tá bom — respondeu, — fico te devendo! — Encheu os dois copos de cerveja com pressa, derramando um pouco na mesa. Pegou o seu e levantou-o no ar. — Um brinde, Aparecida!
Bateram os copos. Gargalharam juntos antes de beber toda a cerveja em um único gole. Pousaram os copos na mesa, desviando o olhar para o movimento ao redor.
— Perfeito. — Disse Aparecida, — você vai precisar fazer duas coisas: primeiro, repetir todos os dias, antes de dormir, algumas palavras. Depois, ganhar a atenção genuína de uma única pessoa. Se conseguir, vai viver nos sonhos de todos aqueles que já passaram por você.
— Não sei se vai ser tão fácil ganhar a atenção de alguém. Te falei que é isso que tenho tentado faz tempo. E que palavras são essas?
Aparecida pegou uma caneta da bolsa e puxou um guardanapo da cestinha de molhos na mesa. Em silêncio, abaixou a cabeça e começou a escrever, pausando vez ou outra para pensar. Malaquias não ousou interrompê-la. Depois de alguns instantes, ela lhe entregou o papel.
Ao ler as palavras, Malaquias se encantou. Ouviu o ritmo, a afirmação que traziam. Guardou o guardanapo no bolso, mas não precisava. Jamais iria esquecê-las.
* * *
Seu próximos dias vieram carregados de esperança. Dedicou mais horas às suas performances, frequentou novos lugares e experimentou conversar com transeuntes. Mas as pessoas fugiam com medo de que fosse roubá-las. Todas as noites repetia as palavras de Aparecida como uma oração ao se deitar, mas com o tempo, ouvir sua própria voz pronunciando a bela ladainha já lhe causava enjoo. Decidiu, então, acompanhar o feitiço com uma música que compôs.
Mais de um mês depois de seu encontro com Aparecida, nada havia mudado. Até uma tarde quando, depois de cantar seu repertório de sempre, fez uma pausa. Começou a cantarolar as palavras em voz alta, o violão acompanhando com a nova melodia. Se esqueceu de onde estava por um instante, tempo suficiente para uma pequena multidão se juntar diante de seu banquinho. Todos em silêncio, encarando Malaquias de olhos marejados, apreciando a música. Sentiu suas próprias lágrimas escorrerem no rosto até encontrarem os lábios, que sorriam. Quando parou, as pessoas seguiram seu rumo como se ele não existisse mais.
Naquela noite, Malaquias fechou os olhos e visitou os sonhos da multidão. Viu suas vidas. Sentiu sua alma se conectando com cada uma delas, se tornando parte de tudo. Não tinham como escapar, davam toda sua atenção a ele. Se deliciou com cada olhar, cada lágrima, cada sorriso, cada pessoa cantarolando com ele. Enquanto era consumido nos sonhos, seu corpo desaparecia. Quando veio a manhã, Malaquias já não estava mais lá.
Essa edição da Mil Palavras foi um pouco diferente. Ao contrário da proposta oficial da newsletter (de escolher uma fotografia autoral e criar uma história de mil palavras a partir dela), dessa vez escolhi um conto que escrevi e usei a história de inspiração para fazer uma série de fotos. Comecei a Mil Palavras com o objetivo de me manter ativo, buscando inspiração em outras artes e desenvolvendo o hábito mensal de criar alguma coisa nova. Com essa edição, fico feliz de ver que essa inspiração também atravessa formatos.
As imagens que você viu aqui foram todas feitas no último mês, com o apoio de colegas fotógrafas e fotógrafos que também estão aqui retratadas e retratados. Essas e outras fotos serão apresentadas como meu trabalho de conclusão de curso na Escola Câmera Criativa, sob a orientação da incrível Lilian Barbon (também retratada). Recomendo muito conhecer o trabalho dela.
Termino com um agradecimento especial a todas as pessoas que modelaram para essa série: Hugo Mussi, Emanuela Valgas, Lilian Barbon e Mariana Takahashi.
Se você gostou da história de hoje, clique no botão abaixo ou encaminhe o email para compartilhar essa edição com alguém especial.
Deixe seu comentário no Substack ou responda esse email para me contar o que achou. Vou gostar muito de ouvir a sua opinião!
P.S — A história de Malaquias já teve uma versão anterior que publiquei em uma plataforma interativa no começo desse ano. Lá, quem sabe você possa chegar em um final diferente, ou até descobrir quais eram as palavras que Aparecida escreveu no guardanapo. Você pode jogar a história aqui (em inglês).