O pedal travou quando Luís terminou a segunda curva a caminho de casa. Foi rápido ao ajustar o corpo, evitou a queda, mas perdeu velocidade. Consultou a distância percorrida no celular mais uma vez, se aproximava metro a metro do seu objetivo. Conquistaria o título de Mestre Ciclista do Vale da Lua. Construía a reputação no aplicativo há semanas, à frente de quase todos os competidores. Agora, nada iria impedi-lo. Exceto, talvez, o pó e a terra que se acumularam na velha bicicleta.
Quando o pedal não avançou, Luís se pôs de pé e, usando o peso do corpo, deu pequenos saltos. O metal cedeu, a bicicleta balançou e derrapou no cascalho, mas ele recuperou o controle. O garoto parou e avaliou o estrago. Os pedais agora estavam pendurados, mas não viu outros danos. Conseguiria terminar o percurso usando a gravidade a seu favor. O aplicativo continuava marcando seu trajeto, ainda tinha tempo. Subiu na bicicleta em um impulso e seguiu tomando velocidade nas descidas, evitando frear nas curvas. Até que derrapou.
Ele perdeu o equilíbrio e caiu na beira da estrada, a bicicleta rolou barranco abaixo. Com braços e pernas em carne viva, empanados pelo pó, Luís, ainda no chão, procurou seu celular. Um milagre: a tela estava inteira, o aplicativo funcionava. Desceu mancando para buscar a bicicleta. Alcançou-a já quase de volta à estrada, na curva inferior. Colocou-a de pé. Testou os freios, que responderam como esperado. A roda da frente, no entanto, estava torta.
Como endireitá-la? Tinha ferramentas, mas nunca precisou usá-las. O aplicativo emitiu um som, avisando que pausava a corrida. Tinha que se apressar. Improvisou sua oficina e foi procurar uma pedra resistente.
Quando tentava remover a roda foi surpreendido por uma ciclista que descia a montanha, assustada com a visão do garoto ensanguentado.
— Ei! Está tudo bem?— ela perguntou apoiando sua bicicleta no barranco. Luís a reconheceu, uma turista que visitava o parque há semanas. Ela observou o estado da bicicleta. — Deixa eu te ajudar, já fiz isso mil vezes. — Antes que pudesse responder, o celular de Luís emitiu outro alarme, exibindo uma notificação na tela:
“ATENÇÃO! SE ACEITAR AJUDA PERDERÁ O PROGRESSO PARA O TÍTULO DE MESTRE CICLISTA. VOCÊ DEVE SER CAPAZ DE CONSERTAR A BICICLETA SOZINHO”.
As mãos que seguravam o celular tremiam, cansadas. Luís respondeu, irritado:
— Não, não posso! Tenho que resolver isso sozinho. — A garota observou em silêncio, avaliando as ferramentas do garoto. — Mas, obrigado mesmo assim.
— O que você vai fazer com essa pedra? Menino, o sol vai se pôr já já, você sabe como fica frio e escuro aqui à noite? Deixa que eu arrumo.
Bufou ao ouvir a turista querer dar lições sobre o clima da sua própria terra. O aplicativo ainda estava aberto, o aviso sempre presente na tela era sua maior preocupação. Luís evitou encará-la, caminhou até a bicicleta e começou a trabalhar na roda em silêncio. Conseguiu removê-la, mas estava mais torta do que imaginava. Colocou-a de lado no chão, pegou a pedra e preparou o primeiro golpe.
— Espera! Você tem ferramentas de emergência? — a garota perguntou. Sem encará-la, Luís parou e pegou um canivete em um bolso da mochila. Tinha miniaturas de um alicate, chaves de fenda e de rosca. —Se você pegar esse alicate, pode apertar os raios…
— Não! —gritou Luís. —Por favor, não fala mais nada, vão ouvir.
— Você vai marretar a sua roda com uma pedra, acha mesmo uma boa ideia? — Outro alarme soou, e o celular exibiu uma nova notificação.
“ATENÇÃO! VOCÊ RECEBEU AJUDA E FOI DESQUALIFICADO DO TÍTULO DE MESTRE CICLISTA. SEU PROGRESSO SERÁ APAGADO E VOCÊ PODERÁ TENTAR NOVAMENTE NO PRÓXIMO MÊS”.
O grito de Luís ecoou por todo o vale. Ele atirou o celular longe, vendo o aparelho deslizar sobre o cascalho. Depois se levantou e foi buscá-lo, ainda mancando. A garota exibiu um sorriso debochado.
— Posso arrumar agora? — perguntou mais uma vez. Sem dizer nada, Luís estendeu a mão encardida de terra, oferecendo o canivete. A garota preparou o alicate e foi apertar os aros da roda.
— Você é uma mecânica viajante ou algo assim? Eu não tenho dinheiro pra te pagar.
— Não, só estou fazendo uma boa ação — respondeu sem olhar para trás, — você claramente não sabia o que estava fazendo.
— Eu quase ganhei a bicicleta do prêmio dessa vez, ninguém podia me alcançar… —Luís se sentou ao lado dela, observando-a trabalhar. Com cuidado, ela apertava os aros e testava a tensão com os dedos. Às vezes, parava e girava a roda no ar diante de si, mantendo um dos olhos fechados.
— Você tinha que aprender a arrumar a que tem antes de ganhar uma nova. — Luís reprimiu um protesto
— Aquela era de viagem, igual à que o povo que vem pra cá usa…
— São lindas né? Sempre quis uma. Mas essas aí são coisa demais só pra ir ao trabalho. — A garota colocou a roda de volta, seu rosto iluminado pela luz vermelha do fim da tarde. Com uma das mãos, deu um impulso para girá-la. Ainda estava bamba, mas cumpria sua função.
— Queria viajar… Talvez guiar os gringos todos pelo vale e juntar um dinheiro — falou para si mesmo.
— Pronto. Os pedais vão dar mais trabalho, mas assim você consegue descer até a cidade. Vou com você caso tenha mais algum problema. —Ela empurrou a bicicleta em círculos, avaliando o trabalho. Depois sorriu, satisfeita.
Os dois desceram pela estrada, lado a lado. A bicicleta dela, um conjunto de peças de cores e formatos diferentes, iluminava o caminho com sinalizadores. Contou que se chamava Agus e estava viajando pela região para estudar as estrelas.
— Nunca vi um lugar com um céu como o daqui. Acho que não vou embora tão cedo.
Luís só precisou empurrar a bicicleta quando a estrada se inclinou em uma leve subida. Estava exausto, mas queria que a conversa se alongasse. Agus pedalava devagar, acompanhando o caminhar do garoto.
Um alarme soou e ambos pararam.
Ele reconheceu o som. Sacou o celular, ansioso por uma recompensa por ter completado o percurso. Mas o alarme veio da direção de Agus, que tentou silenciá-lo. A tela acesa iluminava seus rostos, preenchida por duas notificações.
Primeira notificação: “VOCÊ RECEBEU PONTOS EXTRAS POR AJUDAR UM CICLISTA EM APUROS”.
Segunda notificação: “PARABÉNS, AGUS! VOCÊ CONQUISTOU O TÍTULO DE MESTRA CICLISTA DO VALE DA LUA”.
Obrigado por chegar até aqui. A foto dessa edição foi tirada em 2015, no Vale da Lua do Deserto do Atacama. As paisagens de lá já me deram muita inspiração, inclusive de algumas coisas que pretendo trazer em futuras histórias na Mil Palavras.
É um lugar inóspito, sem muita vegetação no solo ou muitas nuvens no céu, onde me senti mais como uma ínfima parte do universo do que do nosso próprio mundo. Talvez seja o estranhamento de um brasileiro do sudeste que está mais acostumado com a paisagem da mata atlântica (o que ainda resta dela). Curiosamente, a história acabou tomando seu próprio rumo e o Vale da Lua só ilustra a desventura de Luís.
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P.S — Essa edição da Mil Palavras saiu um pouco antes para participar do Newsleterraço, um dia no qual um monte de gente boa que escreve newsletters combinou de lançar novos posts. Você pode conferir todas as news participantes aqui.
Obrigado e até a próxima edição.
João Aguiar
Que texto lindo!