Acordo e sinto algo andando no meu rosto. Pulo do chão em um impulso. Estapeio a bochecha com força, expulsando o que quer que estivesse lá. Formigas do tamanho do meu polegar caem na terra coberta por folhas secas enquanto tento recobrar o equilíbrio. Fico tonto, levantei rápido demais. Minha cabeça lateja enquanto piso nos insetos, não posso deixar barato. Checo o resto do corpo, não quero outra forma de vida caminhando em mim. Não vejo nada além de picadas nos pés que pernilongos deixaram para trás. Já não sei onde estou. Não encontro meu telefone ou documentos nos bolsos da bermuda.
Olho ao redor. Estou cercado por árvores. Todas parecem iguais, assim juntas. Um aglomerado marrom e verde que às vezes deixa passar um pouco de luz. Mas uma me chama a atenção, aquela onde eu apoiava meu corpo quando acordei. É muito alta, tem o tronco largo. Suas finas raízes parecem abraçar tudo ao redor, até alcançar um caminho de terra coberto de folhas pisadas. Devo estar em alguma trilha. Raios de sol cortam a vegetação e marcam o chão com manchas douradas. À esquerda, o caminho se estende por entre árvores até onde a vista alcança. Na distância vejo uma área mais iluminada. Decido caminhar nessa direção.
Ouço o vento distante, e outro som que me lembra o de ondas quebrando na praia. O cheiro do mato quente é sufocante. O ar úmido e o calor do sol se acumulam, molham o corpo. Não sei o que é suor, umidade ou os dois. O som de ondas aumenta à medida que avanço. Se chegar até uma praia posso ter uma ideia melhor de onde estou, quem sabe avistar alguém. Anseio pelo vento que escutava, pelo alívio daquela mata abafada, por água fresca para matar a minha sede. Mas eu nunca chego. Caminho por horas em direção à luz. O calor nunca diminui, nem a distância. Meus pés estão feridos entre os dedos pelo atrito do chinelo.
O constante canto das cigarras é interrompido pelo farfalhar de folhas atrás de mim. Me viro, esperando ver alguém, algum animal. Mas o que está lá me assusta ainda mais. Alguns metros atrás está a mesma árvore com seu tronco largo e raízes finas, no mesmo lugar. Chego mais perto, e aí estão as mesmas folhas, as formigas mortas, as manchas de luz. A árvore tem uma marca vermelha em uma abertura no tronco, não posso confundi-la. Estou de volta onde comecei.
Tomo outro caminho. Corro, tentando ignorar a dor e o sangramento nos pés, mas não importa o quão longe eu vá, ou pareça que eu vá, estou sempre de volta no mesmo lugar, a apenas alguns passos daquela árvore. Já se passaram horas, mas o mesmo raio de sol ainda bate na sua raiz, a abertura no tronco me encarando num misto de deboche e terror.
Sento no chão, sem forças. Como vim parar aqui? Percebo que o perigo é real, não sei onde encontrar comida e nem água. A última coisa que me lembro é de trabalhar no terreno que queria abrir. Mas não era aqui. Não conheço essa mata, nunca estive aqui antes. A árvore, porém, é familiar.
Ouço o farfalhar mais uma vez e olho ao redor. Um pequeno caminho na mata se abriu. Agora vejo, não muito longe, um corpo de água refletindo o sol. Corro na sua direção. É uma enorme lagoa, cercada por montanhas verdes. Provo a água, doce, e mergulho minha cabeça me livrando do calor enquanto bebo. Aprecio cada gole, me refresco por dentro e por fora, tenho uma nova vida. Sentado na margem, vejo um tronco caído, coberto de fungos e cogumelos. Colho alguns deles, talvez sejam a única comida que consiga.
Caminhando ao redor da lagoa encontro também algumas pitangas. Estão deliciosas, mas só abrem o meu apetite. Recolho galhos pequenos e tento fazer fogo, quero cozinhar os cogumelos. Mas como alguém consegue fazer fogo sem um fósforo ou um isqueiro? Depois de inúmeras tentativas, desisto e como os cogumelos ao natural. O gosto é amargo e terroso. Fibras grudam na língua que imediatamente lavo, bebendo mais água. Me deito na terra, olhando para a lagoa. Será que consigo nadar até o outro lado? Não com esse corpo fraco, cansado e faminto.
Não percebo que dormi. Quando acordo, estou mais uma vez com a cabeça apoiada na árvore. Me sinto seguro perto dela. É noite, o tempo que não parecia passar, de repente se acelerou. Não enxergo muito, apenas o brilho suave da lua vence as trevas, mas consigo ver com clareza o tronco largo da árvore diante de mim. Estou tonto. A abertura no tronco parece se distorcer. Olho com mais atenção. Será que os cogumelos me deram alucinações? Deve haver alguma razão para isso, mas a escuridão cria espaço para ilusões.
Não são apenas meus olhos que me enganam, também ouço vozes. Várias delas, tons graves que fazem tremer meus órgãos. Outros, agudos, alfinetam meus tímpanos. Todas falam em uníssono. Assassino, dizem. Assassino, repetem uma, duas, três mil vezes. Tomam conta de mim, sua acusação me causa dor, minhas entranhas se contraem em agonia. Não sou assassino, penso, nunca fiz mal a ninguém. De repente vejo a árvore. O tronco largo e as longas e finas raízes são o centro de tudo. Ela está em chamas. O fogo se espalha ao redor, e tudo é calor. O mundo é vermelho. A árvore parece gritar, labaredas anunciando sua morte enquanto eu assisto. Eu e o fogo somos um só.
Em um piscar de olhos, a escuridão toma conta de tudo outra vez. Não há mais fogo, nem vozes. Só escuridão. Eu sei porque estou aqui. Ela uma vez esteve sob o meu controle, e eu a matei. Agora, estou sob o dela. O que acontece depois não depende mais de mim. Só ela pode devolver a minha vida.
Essa foi a primeira edição da Mil Palavras, espero que tenha gostado. A partir de agora, todo mês vou publicar uma foto e, com ela, uma história de (mais ou menos) mil palavras.
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João Aguiar