A melhor parte daquele dia foi caminhar sobre o céu, ouvindo cada passo espalhar a água de um espelho infinito. Logo o resto do grupo desceu da caminhonete, cada um preparando suas selfies, e me irritei. Era impressionante como um não se importava com o outro, se interrompendo e atropelando, ignorando a experiência que compartilhavam. Eu só queria apreciar o horizonte, o céu e a terra se confundindo como não acontece em nenhum outro lugar do mundo. Nem peguei a câmera na mochila que carregava nas costas, nenhuma foto faz jus àquilo. Outra garota sozinha, vestindo sua legging e top de corrida debaixo do moletom, interrompeu meus pensamentos e me pediu para tirar sua foto. Parecia menos autocentrada que os demais, então, mesmo odiando aquele ritual, resolvi ajudá-la.
Quase derrubei seu celular quando escutei dois estouros, o mesmo som que ouvia quando meu pai atirava para o alto para assustar ladrões de galinha. Me agachei. Ouvi gritos, o motor roncando e pneus sobre a água. A caminhonete arrancou, deixando um corpo para trás. Tentei me levantar, mas minhas mãos e pernas tremiam. Um cara corria atrás do carro gritando “meu passaporte!” em vão. A garota do top correu até o corpo. Consegui ir atrás dela e vi nosso guia estirado no chão, o sangue manchando o branco em um tom rosado se espalhando pela água. Os gemidos de dor nos trouxeram alívio, estava vivo, mas sua perna sangrava muito.
— Deixa eu ver — falou uma mulher do grupo. — Vou tentar estancar.
— Corre pra pedir ajuda! — Implorou o guia — Alguém corre pro sul, podem encontrar gente nos acampamentos.
A garota de top pegou o celular, perguntando qual era o número de emergência, pra quem ela tinha que ligar, se não conseguiam um helicóptero ali.
— Não, não, não tem sinal e levaram os rádios, alguém tem que ir, pro sul, alguém corre pro sul! Pra lá! — Disse, apontando para o vazio do deserto. Ele insistia que anotássemos coordenadas que jurava estarem corretas, acabara de vê-las no mapa.
O grupo ficou em silêncio, ninguém queria se voluntariar. Mas eu não ia ficar parada no meio do nada, esperando para morrer de sede ou de fome junto do pobre guia.
— Vamos logo. Quem vem comigo? — Perguntei.
* * *
Caminhei acompanhada da menina de top — descobri que se chamava Luísa — e um casal. Na quarta hora, o som repetitivo das botas nos dois centímetros de água já me irritava. Não via nada além da imensidão do deserto que se alaranjava. Foi a primeira vez que a ideia do pôr-do-sol me causou desespero. Mesmo nas noites escuras da fazenda, eu sempre soube o caminho de casa. Estava com sede e fome, mas ainda não queria gastar as nozes e a água que tinha na mochila. A posição do sol indicava que continuávamos indo mais ou menos ao sul, mas foi ao oeste que encontrei minha salvação.
— Aquilo ali… não é uma das ilhas? — Disse, apontando para uma forma escura no horizonte.
— Pode ser — a outra mulher respondeu — mas é melhor continuar indo pro sul, talvez a gente encontre um dos acampamentos.
— Eu já perdi as esperanças — disse Luísa — Não sabemos até onde temos que andar e já está esfriando. O que vamos fazer quando não aguentarmos mais? Também temos que pensar em nós.
— Tá, mas a gente precisa buscar ajuda pro guia. Não deve ter ninguém naquela ilha. — O namorado da mulher disse. — Vai deixar o cara morrer sangrando?
— Mas ela tem razão — eu respondi. — A gente não vai achar ninguém hoje e duvido que alguém vá se aventurar no escuro procurando coordenadas que podem ou não estar certas.
— Faz o que você quiser, vamos continuar indo pro sul. Mas a gente tem que dividir a comida, não temos muito.
— Eu não tenho nada comigo, vocês que estão com as bolachas. Vão dar um pouco pra gente?
O homem avançou na nossa direção e eu recuei, fora do alcance das suas pernas lentas.
— Com essa força você acha que chega longe? — Disse Luísa — Vamos pra ilha, querido. Se a gente morrer, não adianta nada.
* * *
Caminhamos rápido, queria avançar antes do sol se pôr. Eu estava certa, a montanha de terra e cactos no meio do vazio crescia diante de nós. Quando escureceu conseguíamos enxergar o vulto da ilha cobrindo o céu estrelado. A cada passo me sentia um pouco mais segura. Pelo menos até ver uma pequena luz avermelhada.
— Espera, apaga a lanterna. — Disse, segurando o passo. — É uma fogueira, tem alguém lá.
— Vamos fazer sinal pra eles, podem nos ajudar. — O namorado falou.
— Tá louco. Vamos ver quem é antes, a gente já quase morreu hoje.
Assistimos o fogo trepidar, mas não vimos nenhum outro movimento. Seguimos a caminhada devagar, usando a luz da fogueira como guia. Tropecei várias vezes em pequenas pedras e desníveis, mas só me assustei ao ouvir um estrondo ao meu lado. Luísa trombou com alguma coisa grande. Tateamos o objeto, senti uma superfície lisa e gelada, coberta de pó e sal que deixaram minhas mãos ásperas.
Antes que pudesse acender a lanterna, ouvi um clique e o objeto me empurrou para o chão. Uma luz me cegou e ouvi alguém gritando perto de mim, não entendia o que dizia. Os outros devem ter corrido, senti a água espirrar no meu rosto e ouvi seus passos se afastando, suas respirações ofegantes distantes. A lanterna virou na direção deles e aos poucos fui recuperando minha visão. A luz iluminava parte do objeto. Um carro. Uma caminhonete, nossa caminhonete. Alguém descia o barranco, vindo da fogueira, a lanterna me cegou de novo e ouvi mais gritos.
Buscaram os outros iluminando a escuridão, a pessoa que desceu o barranco corria atrás deles. Gritei ao som dos disparos que ouvi em seguida. O homem que me derrubou assistia à caça, então aproveitei a chance. Acendi minha lanterna e apontei-a para seu rosto. Quando fechou os olhos, usei-a para golpeá-lo com força no nariz, corri para dentro da caminhonete e tranquei a porta. Ele gritava, esmurrava a janela, tentava todas as fechaduras. Logo o vidro de trás se estilhaçou com um murro.
Tateei ao redor do volante e senti a chave ainda no contato. Dei partida e ouvi o barulho do motor se misturar com os berros do homem ao tentar quebrar o resto do vidro traseiro com a mão ensanguentada. Engatei a ré, passei por cima dele e dirigi em direção à escuridão. Ignorei os gritos e os tiros, acelerei o máximo que pude. Precisava me afastar daquele lugar.
Ainda me culpo por esse dia, por ter sido a única a sobreviver. Mas Luísa estava certa. Também temos que pensar em nós.
A foto dessa edição foi tirada no começo de 2015, no Salar de Uyuni, Bolívia. Visitei o famoso deserto de sal em uma boa época do ano, quando o chão está coberto por uma fina camada de água que espelha o céu. É um lugar incrível, mas remoto o suficiente para dar medo de ficar perdido ou isolado. As ilhas de terra, pequenas montanhas cobertas por vegetação de deserto, estão espalhadas em partes do salar (que já foi um lago) e são bons pontos de observação.
O deserto hoje também é conhecido pela exploração do lítio, mineral abundante no lugar e que é matéria prima para a maior parte das baterias que usamos. Essa matéria da National Geographic fala mais sobre o assunto.
O fotógrafo Eric Paré, famoso por fazer imagens com a técnica de light painting, criou muitas de suas fotografias no Salar de Uyuni e outros lugares igualmente surreais. Vale conhecer o seu trabalho.
Achei Na Internet
Nas minhas aventuras pela Internet acabo trombando com coisas que acho interessantes, inspiram o trabalho ou só me divertem. Entre uma edição e outra dessa newsletter, também escrevo sobre outros temas no meu blog. Resolvi começar a compartilhar um pouco de tudo isso por aqui. Quem sabe temos gostos parecidos.
🧑💻 Malaquias E A Busca Por Existência – No blog falo sobre o processo de evolução da história da última edição, desde que ela apareceu no meu caderno até chegar na newsletter. Também explico como fotografei as imagens que ilustraram o conto.
📚 Escrita Em Movimento: Sete Princípios Do Fazer Literário, de Noemi Jaffe – O livro explora princípios que fazem textos literários se destacarem, com o bônus de depoimentos de grandes escritoras e escritores no final de cada capítulo.
📚 Piranesi, de Susanna Clarke – Um livro que peguei despretensiosamente, mas que logo me prendeu com Piranesi dentro da “Casa” sem fim. Junta realismo mágico, mitologia e diários. Não falo mais porque a história é ainda melhor se você chegar sem saber muito.
📚 Tá Todo Mundo Tentando, de Gaía Passarelli – Uma mistura de reflexões sobre a escrita e explorar o mundo. Como um paulistano vivendo longe de casa, gostei de revisitar o espírito da cidade nas descrições da terceira parte do livro. É uma ótima adição ao trabalho que a
faz na newsletter de mesmo nome.📝 Garapuletter – Moro em Florianópolis, e desde que me mudei senti falta de notícias locais e agendas culturais além dos grandes veículos de comunicação. Esse mês encontrei a Garapuletter, que duas vezes por semana me fala tudo de bom que acontece nessa cidade.
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Ótimas dicas e tremenda descrição do salar (que não conheço!) Obrigada por incluir o Tá Todo Mundo Tentando :)